Diário de Quarentena: um mês depois

Querido diário,

Comecei direitinho fazendo pequenas crônicas sobre o dia a dia dessa quarentena até o 11º. dia de quarentena quando eu furei o isolamento social e fui comprar sorvete porque eu estava a fim de comer um Magnum. E olha que eu nem tenho hábito de tomar picolé, muito menos Magnum. Mas aí eu fiquei a fim e saí de casa só pra isso. E aí esqueci. Me acabei no Magnum e esqueci de diário, de rotina, de tentar manter a mente sã nessa quarentena louca...
Voltei! ÊEE pra meus dois ou três leitores que esperam ansiosamente pelos meus textos...
Vou fazer então um balanço dessas quatro semanas, cinco semanas, sei lá quantas semanas. Pelas minhas contas, hoje é o dia 37 da quarentena (estou contando a partir de 16/03/2020, quando a UFRJ mandou a gente ficar em casa trabalhando remotamente).
Eu tenho tentado ter uma rotina, mas, obviamente, não tenho conseguido. Algumas vezes a ansiedade bate e as coisas não ficam nada boas. Tenho tido uns sonhos estranhos. E eu resolvi fazer o que eu fazia quando eu era adolescente: ficar horas na cozinha fazendo só um prato, em função de uma receita.
Semana passada eu tive um sonho-pesadelo muito estranho, sonhava, entre outras coisas doidas, que o atual presidente (vou me privar de escrever o nome dele aqui) vinha e me dava um soco no braço direito e o braço ficava dormente. Era uma dor horrível e eu começava a chorar e perguntava: "Por que você fez isso?" e ele saía rindo com o olhar psicopata dele. Eu tentava mexer o braço, mas não conseguia, até que finalmente acordei. Eu tinha dormido de mal jeito, e minha mão estava pendurada, e o braço estava, de fato, dormente. Então acho que o sonho foi meio que um aviso do subconsciente (existe isso?) para eu acordar e mexer o braço dormente. Mas assim que abri os olhos, notei um outro fato tão apavorante quanto sonhar com um psicopata te socando o braço: meus dentes estavam rangendo muito. A sorte (ou precaução) é que eu uso aparelho para bruxismo, então os dentes estavam deslizando, mas minha mandíbula estava dolorida e eu conseguia ouvir o barulho do ranger dos dentes. E eu entendi porque tenho acordado com dor no pescoço e com o maxilar cansado. E aí eu me dei conta do braço dormente e comecei a mexer e a pensar na vida, no isolamento, na merda em que a gente está. E lembrei do Tobias.
Tobias era um cachorro que a gente tinha na casa da minha avó - até hoje não sei de quem era o cachorro, se de todos ou só da minha avó - que era uma mistura de Husky com Pastor Alemão. Então ele era um pastorzão grandão, com pouco pelo. E o passatempo de Tobias era comer coco. Na casa da minha avó tinha muito coqueiro e os cocos caíam. Tobias sentava no chão, pegava o coco caído, segurava com as patas dianteiras e pacientemente começava a descascar o coco com a boca. Tirava a casca verde e chegava no coco. Abria o coco com a boca. Agora imagina que pra ele abrir ele tinha que abocanhar o coco. Sim. Ele abocanhava o coco e mordia com vontade. O coco partia. E ele calmamente comia o interior do coco. E foram muitas as vezes em que eu observei aquele cachorro calmo, amigo, parceiro, cujo único defeito era ficar mijando nas rodas dos pneus dos carros pra marcar território, calmamente escalpar o coco e comer seu conteúdo com vontade. E eu pensava, nossa, se entrar alguém aqui, Tobias pode matar só com uma mordida. E a mandíbula dele era grande, a gente passava a mão na cabeça dele e apertava as "bochechas" dele e sentia que ele era forte na boca. Aí eu pensei, depois de lembrar da cena de Tobias comendo coco que do jeito que meus dentes rangem, de como eu sou forte e posso até matar uma pessoa só com uma mordida. Deve ser por isso que eu não saio por aí mordendo as pessoas. Vai que...
Mas esse negócio de ficar rangendo os dentes me fez tentar resolver esse problema na medida do possível, dentro do possível, e dentro de casa. Então resolvi ter uma atividade, tipo um hobby, que me ocupe algumas horas do dia, e eu resolvi voltar a fazer pão. Porque antes de ser modinha, eu fazia pão. Como eu disse algumas linhas acima, quando eu era adolescente, eu entrava na cozinha, quando a Bia deixava, claro, e passava a tarde toda entretida numa única receita. Fazia bolo, doce, pudim, pavê, empadinha, mas principalmente, pão. E aí comecei a ver vários vídeos no YouTube, ler várias receitas, e comecei a fazer o levain. Levain é o fermento natural, que a gente faz em casa, com farinha e água, ou mel, ou suco de fruta, ou água mesmo. Super fácil, super simples. Arrumei uma receita, prestei atenção no material e métodos: juntei o material (colher medidora, pote de vidro, lugar no armário), preparei os ingredientes e segui os procedimentos à risca. Como boa pesquisadora que sou, repliquei o experimento e toda feliz comecei o meu levain.
No mesmo dia, fiz uma outra receita de pão, esse que leva a panela de metal no forno, pra "criar um forno dentro do forno" e o pão ficar úmido. Fiz com fermento biológico seco, desses que a gente compra no mercado, na padaria, normal. Como uma despedida do fermento comprado, porque eu ia passar a fazer pão com meu próprio fermento.
A receita que eu faço é super simples na quantidade de ingredientes: farinha, água, fermento e sal. SÓ! Maravilha, né? Mas fazer pão é legal também porque a gente se ocupa o dia todo. E acaba sendo uma metáfora de como a gente anda esses dias de quarentena: tem que misturar dois ingredientes, deixar a massa descansar vinte minutos, juntar mais um ingrediente, misturar, junta o último ingrediente, sova por cinco minutos, descansa vinte minutos, dobra pra cá, dobra pra cá, descansa mais vinte minutos, tira da tigela, coloca na pia, enfarinha, coloca numa outra tigela, cobre, espera 30 minutos, liga o forno, espera 30 minutos, coloca o pão no forno, queima dois dedos, espera 45 minutos, tira o pão do forno, queima mais dois dedos, coloca o pão na grade pra esfriar, espera esfriar, não espera esfriar, corta o pão quente mesmo, queima mais dois dedos ... Voilá. O pão. Igual a gente, né? levanta da cama, faz um café, senta na varanda, olha pra cá, olha pra lá, levanta, deita no sofá, vira pra cá, vira pra lá, muda de canal, vira pra lá, levanta, come qualquer coisa, senta na varanda de novo, toma outro café, tá sol, toma uma cerveja, senta no sofá, vira pra cá, vira pra lá, ih deu oito horas, vou ver um filme pra dormir.
Enfim, voltemos ao levain, que de terapia me fez constatar a minha ignorância perante o grande mundo da fermentação. A primeira ignorância foi constatada quando eu me dei conta de que a minha receita era muito simples, comparada com a que um colega postou no grupo, que é a receita que ele faz de levain: com suco, espera dois dias, separa, coloca farinha, espera, separa... me perdi aqui, vou ler do início, onde que falava que colocava com suco mesmo? ah muito difícil, vou fazer com farinha e água que está ótchimo. Primeiro dia, juntei três colheres de farinha, duas de água, misturei bem pros micro-organismos do ar se incorporarem e fazerem o milagre (eu vou comer micro-organismos assim deliberadamente? sem querer é uma coisa, mas de-li-be-ra-da-men-te?). Vamos ver. Guardei no armário, na parte onde ninguém mexe, quer dizer, onde eu não mexo, porque eu moro sozinha com minhas plantas, e planta não mexe em armário (gato mexe, mas planta não), e fui fazer o pão nosso de sábado. Com fermento biológico seco mesmo, porque afinal, era o que tinha. E fiquei muito feliz e contenta com minha conquista, porque o pão ficou realmente uma delícia, crocante, macio, gostoso, huuummmm, tudo de bom. E eu pensei, ah gente com levain vai ficar melhor ainda. Segundo dia de levain, pego o potinho, vejo que tem já uma fermentação, "tá formando a esponja, olha", falo pra mim mesma, e vejo que tem umas duas ou três manchinhas, ah isso deve ser normal, fui lá, repeti o método, junta farinha, junta água, mistura, mistura, e guarda. Fui viver minha vida. Mas fiquei com uma pulga atrás da orelha, e fui ler sobre o assunto, e vi vídeos, vários vídeos. Enfim. Chegou o terceiro dia, e eu fui lá, separei os ingredientes, vou alimentar meu levain, toda feliz, e quando abro o pote, subiu um cheiro muito forte, que tomou conta da cozinha - que é ventilada - e invadiu minhas narinas e não saiu nunca mais. Mentira, levou uns dois minutos pra sair, mas a lembrança do cheiro não saiu nunca mais. Estava formando uma esponja, mas tinha uma água, tipo um chorume, sei lá o que era aquilo, eu não consegui continuar. Joguei fora o chorume, o levain, a esponja, o que quer que fosse aquilo que estava crescendo dentro do pote, e fui fazer um outro pão com fermento biológico seco comprado na padaria, porque afinal ontem foi dia de terapia. O pão ficou ótimo, mas enquanto eu esperava eu comecei a refletir sobre meu experimento, mistura farinha e água, descansa e vai refletir sobre ter jogado o levain fora. Joguei fora, não consegui. Tudo bem, né? Tudo bem. Algumas pessoas que têm mais experiência com levain do que eu me falaram que era normal, era só jogar fora a água (o chorume!) e voltar a acrescentar farinha e água à mistura. Mas acho que o pior mesmo foi o vídeo motivacional que eu recebi de um coach motivacional (quem precisa de coach motivacional) falando sobre as pessoas que desistem das coisas no meio, de pessoas que não terminam o que começam. ÓBVIO que eu não terminei de ver o vídeo. Comecei e NÃO TERMINEI. Me julgue agora, coach!
E fiquei pensando em como fazer um simples pão pode ser gatilho para outras coisas porque eu comecei a lembrar de outras coisas: tinha o vídeo de uma padeira que ensina a fazer pão de fermentação natural falando o absurdo que é usar fermento de padaria, que isso era nocivo à nossa saúde, as tarefas acadêmicas que têm prazo para serem cumpridas e eu não estou cumprindo, e aí eu resolvi mandar todos à merda e seguir com a minha vida de quarentena: vou fazer o que é possível, no meu tempo e vou procurar cumprir os prazos. O bom é que eu voltei a escrever aqui. E lembrei que tem uma eternidade que eu saí da quarentena pra comer um Magnum, que é como esse texto começou. Vou lá fora comprar um.
Até mais, quando eu sentar aqui de novo pra escrever outro texto.

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