Diário de Quarentena: sete meses depois e eu vou falar do pronome neutro ou a peleja pronome neutro x preço do quilo do arroz

Bom, eu ia me manter em silêncio sobre a treta dos pronomes neutros em português, até que, ontem, conversando com Isabela, uma jovem de 17 anos, muito inteligente e interessante, ela me perguntou: então, Silvia, o que você acha da história do pronome neutro?

E aí eu levantei a sobrancelha e perguntei: ihhh, você quer saber mesmo? E aí começamos a conversar sobre o assunto e a linguista que habita em mim não me deixou mais calada. Então vamos lá.

Sobre o uso da "linguagem neutra" em português, eu vou organizar esse texto em três partes: (1) em que eu tento uma explicação dentro da morfologia seguindo Câmara Jr.; (2) em que eu falo sobre a visão da Sociolinguística sobre o fenômeno e (3) parem de ser prescritivistas e reducionistas.

O que está acontecendo no PB? Algumas pessoas começaram a usar marcas morfológicas de gênero neutro para marcar seu gênero social. Em português, surgem pronomes pessoais e possessivos como neutro: "elu", "delu". Além dos pronomes, aparece uma desinência de gênero neutro que já foi o "@", já foi o "x" e parece que agora está crescendo o uso do "e". Para além das formas de masculino e feminino que já existem na língua,  para designar uma pessoa não binária, usamos os pronomes e as terminações neutras: 

Maria esteve aqui semana passada. Ela está preocupada com a situação dela diante da crise econômica.

João esteve aqui semana passada. Ele está preocupado com a situação dele diante da crise econômica.

Darci esteve aqui semana passada. Elu estava preocupade com a situação delu diante da crise econômica. 


Até aí tudo bem. O gênero nas línguas é um fenômeno gramatical estudado pela morfologia. Então vamos ver como uma proposta à la Câmara Jr. explicaria o fenômeno, não só em PB mas também em outras línguas.  E vou usar Mattoso Câmara Jr. porque é a proposta que eu sei e que resolve a descrição. Para Mattoso Câmara Jr., em português, o gênero nos substantivos é intrínseco e é marcado pelo artigo definido "o" / "a". No caso dos adjetivos, eles se flexionam em gênero de acordo com o substantivo que eles modificam. Então, há palavras que somente estão no masculino (o carro, o homem); há palavras somente no feminino (a casa, a mulher), e há palavras que podem variar entre masculino e feminino (o barco / a barca, o menino / a menina). O gênero é um morfema estritamente gramatical, sem qualquer relação com o mundo biossocial. Assim, para Câmara Jr., dizer que "a mulher" é o feminino de "o homem" é um erro do ponto de vista da formação do feminino em português. O masculino é marcado com o morfema zero em oposição ao -a do feminino. Então palavras terminadas em -o (a tribo), não são necessariamente masculinas, assim como, palavras terminadas em -a não são femininas (o sofá).  E há palavras terminadas por -e que podem ser masculinas ou femininas (a ponte, o dente). Nesses casos, a vogal final é a vogal temática, e não o morfema de gênero. Então, como "tudo é oposição", o morfema de feminino só vai aparecer em oposição ao zero, quando assim ocorrer: o barco / a barca; o gato / a gata. 

Existem palavras neutras em português, mas elas não se referem a seres com o traço [+humano]: tudo, aquilo, nada, isto, isso, etc. 

A marcação de gênero nas palavras é arbitrária e variável nas línguas e não tem nada a ver com o significado da palavra no mundo biossocial (para usar os termos de Câmara Jr.). O que acontece em PB? Acontece que algumas palavras estão começando a ser marcadas gramaticalmente com gênero neutro para marcar uma não oposição no mundo biossocial: em português temos morfemas específicos para marcar feminino, que se opõe ao masculino, no mundo biossocial, mas o não binário não tem uma marcação gramatical específica. Ou não tinha. Não tinha. Porque agora tem: surgem os pronomes e as desinências de neutro para marcar gramaticalmente uma oposição biossocial. E aí eu estou usando a palavra oposição propositadamente: mesmo que a intenção dos indivíduos não-binários que sentiram a necessidade de serem referidos como "elu" e com a desinência -e, gramaticalmente agora elus se opõem ao masculino e ao feminino. Então, para substantivos (e aí os adjetivos por concordância) que tenham o traço [+humano] temos a oposição masculino / feminino / neutro: aluno / aluna / alune; ele / ela/ elu; dele / dela / delu; cansado / cansada / cansade. (OBS: Reparem que não estou marcando o -o das palavras masculinas, porque não é morfema de gênero, e, sim vogal temática.) 

Acabou. Ou não!

Toda a treta acabaria aqui se as pessoas (de ambos os lados, os pró e os contra, linguagem neutra) estivessem se baseando na linguística pura para justificar seus usos. Mas não é assim, né? Senão eu não estaria aqui saindo dos meus podcasts de sintaxe pra falar de morfologia... E por que essa treta toda? Porque a gente está acostumado a associar gênero gramatical a gênero no mundo biossocial. Então vou falar um pouco de gênero em outras línguas. Vejamos duas línguas que marcam gênero de forma diferente: Alemão, que marca no artigo e Inglês, que não marca (ou não marcava).

Alemão marca gênero no artigo e há o masculino (der), o feminino (die) e o neutro (das). O gênero das palavras é relativamente arbitrário. Assim, o sol em alemão é die Sonnen (feminino) e a lua é masculino (der Mond). Muitas palavras são neutras, como o carro (das Auto), a bicicleta (das Fahrrad), o barco (das Boot), mas o trem (der Zug) e o ônibus (der Bus) são masculinas. Então, às vezes não tem como a gente prever: "meios de transporte são neutros", porque nem todos são. E as palavras com traço semântico [+humano]? o homem (der Mann), a mulher (die Frau), o rapaz (der Junge), mas a moça (das Mädchen) e a criança (das Kind) são neutras. Então nem quando há uma certa correspondência "ser do sexo feminino" o artigo é feminino...

Mas Alemão também tem a linguagem neutra, ou também conhecida como gender inclusive language, e aí a coisa fica complicada porque o gênero em alemão é "pervasivo". Então, eu vou dar uma ideia rápida de como seja: usa-se o x para marcar o gênero neutro: meinx bestx Freundx (neutro) em oposição a mein bester Freund (masculino) e a meine beste Freundin (feminino) para "meu melhor amigo".

Em inglês, o gênero não é marcado no artigo: the car (o carro), the ball (a bola), the girl (a menina), the boy (o menino), independentemente se a palavra tem um traço [+ humano] ou não. Então, como eles resolveram a questão da linguagem neutra? Só há necessidade de marcar nos pronomes. E aí vocês pensam que a situação é simples? Claro que não! Uma busca rápida e nós vamos ver que há vários usos de pronomes neutros, incluindo a terceira pessoa do plural para não marcar gênero (Mary was here last week. They are concerned about their situation facing the economical crisis). E há um conjunto de pronomes que têm sido usados por indivíduos não binários. Ao lado das formas he e she, temos e, para os pronomes sujeito; ao lado de him, her temos em para objeto; e ao lado dos possessivos his e her temos es:

When I tell John a joke, he laughs. (Quando eu conto uma piada pro João, ele ri)

When I tell Mary a joke, she laughs (Quando eu conto uma piada pra Maria, ela ri)

When I tell someone a joke, e laughs. (Quando eu conto uma piada pra alguém, elu ri)

When I greet John, I hug him (Quando eu cumprimento João, eu o abraço)

When I greet Mary, I hug her (Quando eu cumprimento Maria, eu a abraço)

When I greet someone, I hug em. (Quando eu cumprimento alguém, eu abraço elu)

When John doesn't get a haircut, his hair grows long. (Quando João não corta o cabelo, o cabelo dele cresce muito.)

When Mary doesn't get a haircut, her hair grows long. (Quando Maria não corta o cabelo, o cabelo dela cresce muito.)

When someone doesn't get a haircut, es hair grows long. (Quando alguém não corta o cabelo, o cabelo delu cresce muito.)

E se a gente fizer uma busca na internet, verá que várias línguas estão usando formas gramaticais de marcar a linguagem neutra, ou a linguagem inclusiva de gênero. Vocês podem procurar por "gender inclusive language" e vão achar vários artigos falando em como é esse uso em diversas línguas. Eu, particularmente, fiquei feliz quando vi que é uma tendência linguística de amplo espectro. Então, morfologicamente, não há problema algum em linguagem neutra. Há problema quando a gente não sabe fazer análise morfológica e confunde gênero gramatical com gênero no mundo biossocial. E os morfemas e pronomes só são usados para palavras que designam serem [+humanos], porque a questão da marcação é uma necessidade dos indivíduos não-binários. E isso nos leva ao segundo ponto dessa (não tão breve assim) explicação: 

Por que isso acontece? A Sociolinguística está aí para nos dizer que esse fenômeno da marcação de gênero é um fenômeno variável socialmente motivado. Língua é identidade, e se um grupo de indivíduos (um grande grupo, diga-se de passagem) motivado por razões sociais marcar linguisticamente sua identidade, essa marcação é tão válida quanto quaisquer outras manifestações de identidade linguística. 

A gente sabe disso meio que informalmente com determinados dialetos urbanos que surgem, como, por exemplo, o dialeto pajubá, que tem origem em algumas palavras de origem das línguas africanas e é usado por determinados grupos: de religiões afrodescendentes como umbanda e candomblé e também pela comunidade LGBT. A gente também reconhece variação linguística dialetal quando identificamos traços característicos dos subfalares do Norte e dos subfalares do Sul do Brasil, pra usar os termos de Antenor Nascentes. A gente sabe disso quando determinados fenômenos linguísticos são característicos de determinados grupos sociais, como por exemplo a regra variável de concordância verbal (nós vai / nós vamos) que muda a medida que o nível de escolaridade dos indivíduos muda.

E esses dialetos identitários são igualmente válidos como quaisquer outros dialetos que são definidos regionalmente (como o dialeto caipira, de Antenor Nascentes) ou diastraticamente (como a linguagem dos jovens urbanos das comunidades) ou sociologicamente (como a linguagem neutra).

Reconhecer o uso da linguagem neutra como um dialeto válido é reconhecer a identidade dos indivíduos que se reconhecem como não-binários. E eu já disse aqui e vou repetir: língua é identidade. Cabe à Sociolinguística estudar e entender o comportamento linguístico dos diversos grupos sociais, sem juízo de valor. Mas parece que as pessoas que têm falado sobre a linguagem neutra (pelo menos as que eu tenho visto aparecer) desconhecem tanto o fenômeno morfológico (e as análises confundem gênero gramatical com gênero biossocial) quanto o social. E isso nos leva ao terceiro ponto da nossa explicação: parem de ser prescritivistas e reducionistas.

Quando a gente faz análise de um determinado fenômeno linguístico sem o véu do preconceito, a gente consegue separar o que é um comentário baseado em aspectos puramente linguísticos do que não é. E aí as pessoas que são contra o uso da linguagem neutra falam em "estragar a gramática", "como meus filhos vão estudar isso na escola?", "mas já está na gramática?", "estão estragando a língua!". Não, não estão estragando a língua, e sim, essas formas já estão na gramática, tanto é que podemos analisá-las e sabemos como usá-las. E não sabemos quando essas formas serão ensinadas nas escolas, apesar de já serem discutidas no âmbito acadêmico, porque o que rege o ensino escolar é o que está nos Parâmetros Curriculares Nacionais... E aí, depende de políticas governamentais. Assim como o estudo da variação linguística entrou nos currículos escolares por volta dos anos 1990's quando da reformulação dos PCNs, precisamos de votação e vontade política para que o ensino das formas neutras entrem nos currículos. Mas isso não significa que as formas não sejam válidas e não estejam já nas gramáticas (entendida aqui como capacidade mental da linguagem) de determinadas comunidades linguísticas.

Tenho visto também as pessoas que são a favor das formas com pensamentos prescritivistas: "isso é o certo", "todo mundo tem que falar assim", "essa linguagem é melhor do que todas as outras". Não, não mesmo. É o certo no sentido de que qualquer variedade linguística de uma determinada língua é válida. Mas não é fazendo manual prescritivista que as pessoas vão passar a usar a linguagem neutra. Então, menos prescrição do ponto de vista de quem defende, e mais descrição linguística. Aqui, eu fiz uma breve análise morfológica baseada em Câmara Jr. Mas não sou morfóloga, sou sintaticista, e há várias outras abordagens sobre gênero gramatical dentro de diferentes quadro teóricos que podem explicar com muito mais propriedade o que eu escrevi no início desse texto. Mas eu quis mostrar uma abordagem dentro de um quadro teórico que dá conta do fenômeno que está aí, em diversas línguas, não só o Português Brasileiro. Um fenômeno que está aí independentemente de corrente política. O que me leva ao último ponto: não sejam reducionistas.

Tenho visto postagens criticando o uso da linguagem neutra fazendo uma oposição: "a população está pagando 50 reais o quilo do arroz e a esquerda quer ensinar pronome neutro". Então, não sejamos reducionistas assim. Não é porque estamos passando por um momento de crise econômica que a gente não pode discutir fenômenos linguísticos relevantes para o estudo da sociedade. Se fosse assim, a gente vai estudar o quê? A gente vai discutir o quê nas nossas escolas públicas? Não vamos discutir marxismo nas escolas públicas, porque as crianças não têm comida. Não vamos ensinar logaritmo de base negativa, porque nossas crianças passam fome. Não vamos discutir ciclo de Krebs, porque nossas crianças não têm comida para alimentar suas células. E é isso o que a gente quer? Não! A gente quer poder discutir dialetos legítimos socialmente e lutar para que nossa sociedade seja menos desigual. Ambas as discussões são válidas e uma não se opõe a outra.

Ao final da explicação de ontem para Isabela, ela me disse com os olhos brilhando: Silvia, você poderia fazer um podcast sobre isso. Então, Bela, não sei, porque ontem eu não falei metade do que escrevi aqui. E também não sei se esse assunto vai chegar aos meus dois ou três leitores.

Era isso. 






Comentários

  1. Amei o texto, estou aprendendo a linguagem neutra e com isso to aprendendo diversas coisas sobre a nossa lingua. Vou conhecer o trabalho

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  2. Bom, parece que seus "dois ou três leitores" cresceram, rs ^.^
    Antes de tudo, queria te agradecer intensamente pelo texto, estávamos precisando dele. Queria te perguntar sobre a separação entre gênero linguístico e gênero biossocial. Ela fica bem clara no caso de não-humanos, mas no caso de humanos a gente não sobrepõe uma coisa à outra de imediato? Por mais que historicamente uma coisa não reflita necessariamente a outra, aqui e agora, no modo como vivemos a língua, isso não acontece? (E ja deixo reegisdtrado que não sou dda área, venho da psicanálise, o que já diz bastante de um jeito bem particular de entender a linguagem.) Digo isso pq, pensando assim não consigo separar o fato de que a gente usa o morfema zero para designar o masculino da ideia de Beauvoir de que a gfentte toma a neutralidade uma suposta essência humana no masculino. To com uma citação aqui na manga de Grada Kilomba, por uma outra discussão: "Há esta anedota: uma mulher Negra diz que ela é uma mulher Negra, uma mulher branca diz que ela é uma mulher, um homem branco diz que é uma pessoa." Alguma sugestão pra gente pensar no reflexo dessa concepção social e epistemológica sobre a história da língua?

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  3. Bom, parece que seus "dois ou três leitores" cresceram, rs ^.^
    Antes de tudo, queria te agradecer intensamente pelo texto, estávamos precisando dele. Queria te perguntar sobre a separação entre gênero linguístico e gênero biossocial. Ela fica bem clara no caso de não-humanos, mas no caso de humanos a gente não sobrepõe uma coisa à outra de imediato? Por mais que historicamente uma coisa não reflita necessariamente a outra, aqui e agora, no modo como vivemos a língua, isso não acontece? (E ja deixo reegisdtrado que não sou dda área, venho da psicanálise, o que já diz bastante de um jeito bem particular de entender a linguagem.) Digo isso pq, pensando assim não consigo separar o fato de que a gente usa o morfema zero para designar o masculino da ideia de Beauvoir de que a gfentte toma a neutralidade uma suposta essência humana no masculino. To com uma citação aqui na manga de Grada Kilomba, por uma outra discussão: "Há esta anedota: uma mulher Negra diz que ela é uma mulher Negra, uma mulher branca diz que ela é uma mulher, um homem branco diz que é uma pessoa." Alguma sugestão pra gente pensar no reflexo dessa concepção social e epistemológica sobre a história da língua?

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  4. Boa noite Silvia. Eu faço Letras e tenho defendido a linguagem neutra da forma como eu pude usando os meus conhecimentos, mas é muito, muito bom ver alguém já formada discorrer sobre isso citando todo o argumento linguístico da coisa. Inclusive essa é a minha única ressalva da coisa: eu estou me baseando na linguística para argumentar, mas o lado contra não está pouco se fudendo, pelo que eu percebi até agora. É uma pena. Mas de novo, obrigada pelo texto!

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  5. Que texto! Vou imprimí-lo e estudá-lo!!! Muuuito obrigado! Abraços de um professor de Português da Rede Pública!

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  6. Olá, vi uma live em que a senhora participou, "Gênero neutro em português: a treta sociedade x linguística", na qual fala ao final que a linguagem em si não é neutra e cita Chomsky, gostaria de saber se seria possível comentar sobre ou até mesmo mandar algum texto sobre o assunto.

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  7. silvia, queremos o episódio de podcast, por favor!

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