Diário de Quarenta: Um ano depois ...

26 de março de 2021, um ano depois ... em um ano quanta coisa aconteceu e quanto a gente já viveu. Viveu? Ou ainda estamos vivendo? Será que vamos viver mais um ano?

E eu que estava achando que estava segurando bem essa onda de quarentena produtiva, ano produtivo de professora universitária, servidora pública, privilegiada, posso continuar trabalhando de casa, dando aula de casa, gravando podcast de sintaxe de casa, lendo os textos de casa, gravando vídeos de sintaxe de casa, escrevendo os artigos de casa, orientando os alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado de casa, coordenando curso de graduação de casa, pensei: mais um ano quarentenada vai ser tranquilo. Segurei a onda, fiz pão, comecei uma composteira, produzi húmus, fiz pão, comecei um projeto paisagístico na minha varanda, fiz pão, plantei plantinhas, fiz pão, já falei que fiz pão? Fazia tudo isso enquanto dava aula, lia os textos, orientava os alunos, fazia um podcast, gravava um video, resolvia um assunto da coordenação. Essas coisas todas que a gente faz e as pessoas não sabem que a gente faz.

Até segunda-feira eu estava de boa achando que tinha tido um ano produtivo na quarentena produtiva e estava segurando a onda até que numa conversa com um orientando pelo telefone, ele diz: "Você não foi pra nenhum evento esse ano? Eu entrava nos eventos, todo mundo apresentou trabalho e você não estava em nenhum evento. Você não fez nada esse ano?" "O que eu fiz? Eu sobrevivi ao primeiro ano de pandemia". E agi como se aquele "você não fez nada esse ano" não tivesse me afetado. Afinal, eu tenho feito várias coisas e tenho me mantido bem. Tenho? 

O que aconteceu? Deu gatilho, né? ÓBVIO. Em qualquer atividade que eu fiz, martelava na minha cabeça "você não fez nada esse ano". Eu estava na hidroginástica, uma senhorinha estava voltando naquele dia, e ela falou "eu voltei só agora".  O professor: "pelo menos voltou, isso que importa". E ela: "Eu estava f0d1da da cabeça, por isso eu voltei". Na hora, eu pensei, quem não tá f0d1do da cabeça não está ciente do que está acontecendo... E ela continuou: "Esse negócio de ficar em casa sem sair, afetou minha cabeça, até remédio eu tive que tomar". Remédio eu não tomei. Fiz pão, criei minhoca, produzi húmus, fiz pão, mas não tomei remédio. Não tomei remédio e também "não fiz nada esse ano". E, aí, meus dois ou três leitores, a semana passou ladeira abaixo, qualquer coisa vinha na minha cabeça "você não fez nada esse ano". 

Eu falo pra todo mundo que se está se sentindo improdutivo que não devemos cair nessa falácia de produtividade, a gente está filtrando notícias, digerindo má gestão de crise, não surtando, respirando fundo, abstraindo número de mortos, enquanto segue trabalhando como se nada disso estivesse acontecendo, como se a ideia do home office fosse uma coisa maravilhosa. Pode até ser, para algumas pessoas, para algumas funções, mas para professor não. A ideia de home office não é uma ideia que deva ser comprada para a educação. Estou há um ano trabalhando de casa. E pra quem acha que professor universitário trabalha somente dando aula, é bom esclarecer que não é só isso.

Desde o início dessa "quarentena produtiva", a gente continua com todas as nossas funções, algumas modificadas, e todas remotas. A gente participa de reunião remota, se estressa com os colegas na reunião remota. A gente orienta os alunos de forma remota, abre uma sala no Meet, "seu microfone está sem som", "ih, o Cristian congelou", "acho que a Silvia caiu", "Sarah, tá sem som", "vamos pro hangout?", "é melhor whatsapp, só somos três". A gente faz atividades de extensão remotamente, atividades que eram para estar sendo desenvolvidas na escola, "vamos pedir para eles assistirem o curso da UnB", "vamos pedir para eles proporem uma atividade que seria desenvolvida na escola". A gente analisa processo remotamente, "você tem que preencher o formulário online", "o meu professor não lançou a nota", "prezada coordenação, eu preenchi o formulário e minha nota ainda não foi lançada", "o siga transformou meu pedido em inscrição direta, não posso mexer na minha grade", "o siga desautorizou essa autorização que a gente tinha dado, você vai ter que pedir pro seu professor mandar pra gente a nota", "o período de lançar nota já fechou, você vai ter que abrir um processo", "desculpa, eu me perdi na lista de processos e passou o seu, sua nota foi modificada no sistema". A gente grava podcast com conteúdo da matéria pra ficar mais fácil pros alunos; a gente grava vídeo com conteúdo da matéria pra ficar melhor a conexão; a gente dá aula na frente de um computador, para turmas inteiras com câmera e microfone desligados, "entenderam a diferença entre 1a e 2b? entenderam? eu tô falando sozinha? Eu caí?", "professora, a senhora vai gravar a aula?", "a aula está lá", "não achei", "está lá no tópico 'aulas gravadas'", "é que eu não tenho familiaridade com o Classroom", "nem eu, gente, nem eu"...

NEM EU TENHO FAMILIARIDADE COM APLICATIVOS DE ENSINO REMOTO. Todo o discurso que a gente está vendo, não sei vocês meus dois ou três leitores, mas eu estou vendo váááárias propagandas de tecnologia pra educação, ensino remoto, "desafios da nova educação", "desafios do ensino remoto", "como o professor pode se especializar no ensino remoto", "faça o curso da XXX EAD, com professores treinados", etc etc etc. Todo esse discurso pode passar a falsa ideia de que o futuro da educação neste país desigual é atrás de uma tela de computador; que a tecnologia veio pra ficar, que as ferramentas serão sempre usadas. Eu, como boa aquariana que sou (agora toda a minha argumentação vai ralo abaixo por causa de signo, estou nem aí, porque o que importa pra uma aquariana é a sua própria opinião), adoro uma tecnologia; acho que podemos e devemos usar a tecnologia a nosso favor EM SALA DE AULA, atividades remotas como COMPLEMENTO DE SALA DE AULA, mas a tecnologia não serve pra substituir um profissional de educação bem formado na formação do aluno. Não importa o conteúdo. Tecnologia nenhuma substitui pessoas. Ah, Silvia, mas tem várias funções acabando porque tem uma máquina pra fazer, sim, a cancela do estacionamento que é acionada com um papel com código de barras. Sim, sim, é igualzinho professor dando aula. Nossa, muito igual. O que a gente está fazendo de ensino remoto, bem, o que eu estou fazendo, não é nem ensino presencial, nem EAD. Quem me conhece, quem já foi meu aluno, sabe como são as aulas: eu ando pela sala toda, eu vejo pelo franzir das sobrancelhas que a pessoa não entendeu, eu pergunto: "entenderam?" e eles fazem sim com a cabeça, e alguns com a testa franzida, e eu pergunto "se entenderam, porque estão com a testa franzida?". E a gente para e volta e pergunta e responde. Isso é construção do conhecimento. Agora, numa aula online, num semestre com carga horária bem menor do que o convencional, que tem complementação de aula em vídeo, se o aluno não ler o texto, não assistir o vídeo, ele não vai entender nada do que eu estou falando (e isso acontece). E aí eu pergunto: "entenderam?" cri cri cri "Estão entendendo?" cri cri cri "Eu caí?" "tem alguém ainda aqui assistindo aula?" e a resposta é um lacônico "sim" no chat, "pode seguir, professora". Ensino remoto, com vídeos e podcasts sobre conteúdo, com leituras e exercícios, que deveriam ser passados em aula, demanda muito do professor e muito do aluno também. O aluno passa boa parte do processo de construção do conhecimento sozinho. Não tem a convivência em sala de aula, em que alguém faz uma pergunta que é a dúvida dele também. Ele vê o vídeo, não entende, não faz a pergunta e tudo bem. Assim como ele faz isso, outros tantos fazem também. E a resposta na aula é "pode continuar, professora". Não, não posso continuar.

Então eu parei aqui para refletir porque essa semana foi muito difícil. Eu acabei chorando no final de uma sessão da JICTAC, que terminou com vários desabafos e manifestos contra isso tudo que está aí. No início, há um ano mais ou menos, eu achava que a gente poderia achar viável um ensino híbrido (meio presencial meio remoto; meia calabresa meia marguerita), mas não, não dá não, minha gente. Fora toda a desesperança que a gente sente (bem, eu, pelo menos), quando a gente acompanha as notícias, tem o esgotamento mental, o cansaço físico, a apatia, a letargia, tudo isso agindo contra a minha quarentena produtiva; tudo isso impedindo que o meu trabalho seja bom. E a culpa? De quem é a culpa? De uma pandemia deliberadamente mal gerida que poderia estar no final? Dos alunos que não entenderam que cada um está sozinho naquela turma do Classroom? De mim? Que tenho recursos: água, luz, internet, equipamento, casa, comida e roupa lavada? Que sou privilegiada? Que tenho que entender tudo racionalmente e fazer o meu melhor e não deixar a produtividade cair? Que tenho que entender que tem gente em situação pior que a minha e é até egoísmo da minha parte achar que tenho problema?

Não sei. Só sei que a tecnologia que eu quero é poder tirar uma foto de Marte do meu iPhone, sentada na minha varanda. Mas tenho que respirar fundo e aguentar mais o tempo que for pra poder voltar a ter uma vida normal. Não o novo normal, com ensino híbrido e máquinas acompanhando o rendimento dos alunos, mas o normal normal: quadro de giz, turma lotada, corredores cheios de pessoas passando de um lado para outro entre uma aula e outra. Ah, sim, e a tecnologia, Eduroam no meu prédio pra eu poder acessar um vídeo bacana sobre qualquer assunto e poder debater esse vídeo com os alunos presentes. Era isso. 

Desabafei. Vou tomar uma cerveja porque ninguém é de ferro. E haja assunto pra meu terapeuta esta semana...



Comentários

  1. Muito boa reflexão!!!! Quanto mais a gente tem informação sobre o que tem acontecido nesse Brasil de 3000 mortes por dia, menos a gente tem a mente focada p realizar as tarefas, não surtar é um desafio diário!!! Amei o texto.

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