Diário de Quarentena: "O sistema de pronomes neutros e o preconceito linguístico: resposta ao Isaque"

 

Ora ora, não é que a linguagem neutra está dando o que falar? E a coluna de hoje foi escrita pela professora Carolina Serra, minha colega da UFRJ, que vem nos falar sobre o preconceito linguístico. 

Espero que gostem! Porque eu amei!

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O sistema de pronomes neutros e o preconceito linguístico:
resposta ao Isaque

Carolina Serra (UFRJ)

carolinaserra@letras.ufrj.br


Meu querido ex-aluno de variação linguística, o Isaque Flausino, me escreveu em setembro último querendo saber meu ponto de vista, como linguista, sobre a criação de um sistema de pronomes neutros na língua (linguagem não-binária). As perguntas dele eram as seguintes: “Será que não seria uma imposição linguística? Isso não afetaria partes da configuração já solidificada da língua?”

Eu procurei responder ao Isaque como eu responderia em uma aula de variação, disciplina dada na UFRJ no 2º período de todos os cursos de Letras. Aí vão:

Será que não seria uma imposição linguística?  Sobre a possibilidade de se criar um sistema de pronomes neutros na língua (linguagem não-binária) ou sobre qualquer uso linguístico "novo", tenho a dizer o seguinte: língua não se faz por decreto, por imposição ou por nada do tipo. A língua se faz pelo uso. Se os falantes, mais ou menos conscientemente, implementam um determinado uso pela necessidade que vêem na sua utilização, independentemente de a língua já possuir outros padrões similares, esse uso pode se estabelecer na comunidade. Mas, veja, para que ele se estabeleça, ele é "avaliado" pela comunidade de fala.

Há usos que surgem e são estigmatizados -- por conta do perfil social de seus usuários -- e tendem a ser evitados pelo grupo maior de falantes. Há outros que, surgidos no seio das classes mais abastadas e mais "letradas", ganham uma aura de positividade (mesmo que inconsciente) e, em hipótese, podem ter mais chances de se implementar/espalhar pela comunidade de fala. Mas o fato é que um uso estigmatizado, pode, com o tempo, deixar de ser e se propagar por todos os grupos de falantes; e aqueles surgidos já com uma "capa" de valoração positiva podem se estabelecer por um tempo e, depois, cair em desuso. Ou seja, muita coisa pode acontecer com um uso "novo".     

  Isso não afetaria partes da configuração já solidificada da língua? Toda variação/mudança linguística (fato comum a todas as línguas naturais) afeta/mexe com partes da configuração já solidificada da língua. Isso é a coisa mais normal nas línguas, ou seja, 1) haver a possibilidade de mais do que (convivência) uma forma linguística para a representação de uma única forma gramatical (da fonologia, da morfossintaxe, etc) e 2) a sobrevivência ou não do "novo" uso irá depender das questões que expus anteriormente. A expansão de um uso depende de muitas questões, mas não costuma seguir a lógica da imposição. Veja a imposição, nas escolas, da gramática do Português Europeu. Nem por isso utilizamos ênclises, mesóclises, pronomes clíticos de 3a pessoa, etc... Por outro lado, quando a comunidade reage negativamente a um novo uso, por preconceito, por exemplo, é exigido, primeiramente, um trabalho de desconstrução desse preconceito social que levou ao preconceito linguístico, para que o uso se difunda de forma mais generalizada.

No nosso trabalho diário, como professoras e professores de Letras, lidamos com todas essas questões e, para além da análise, da descrição linguística, procuramos fazer também a conscientização de que as formas linguísticas carregam uma história e carregam também valores sociais os mais diversos, não sendo possível, assim, desvincular o estudo da língua do estudo da história e da sociedade que a engendra. 




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