Memória seletiva

Tinha me prometido não comentar sobre os últimos acontecimentos do Brasil à la marcha pela Família com Deus bem no estilo 1964, mas depois de ver as reportagens sobre as manifestações do dia 15 de março, resolvi escrever.
Parece que aquela velha máxima "brasileiro é um povo sem memória" faz sentido. Ou então, tem memória seletiva. E eu estava pensando aqui que todos nós temos memória seletiva. A gente escolhe lembrar de coisas boas e às vezes repetimos padrões que não dão certo porque escolhemos lembrar só que foi bom. Uma pessoa que se decepciona no amor, por exemplo, e não fica sozinha, escolhe viver outro amor, e se decepcionar de novo, e viver outro amor, e se decepcionar mais uma vez. Por que? Porque ela escolheu se lembrar das coisas boas. A mesma coisa uma mulher que tenha passado horas em trabalho de parto do primeiro filho, que estava sentado, de costas, virado, e ela não tinha passagem, etc... Ela escolhe ter o segundo filho. Por que? Porque a alegria de ser mãe é maior do que qualquer dor de parto...
Agora, escolher ir pra rua, numa onda de moralização nacional, contra a corrupção, pedindo a volta de um regime militar só pode ter uma explicação: a gente só lembra do que foi bom no regime militar.
E o que foi bom no regime militar? ...
Quando a gente pensa no Brasil de março de 1964 a janeiro de 1985, do que a gente lembra?
Bem, estou aqui fazendo um brainstorm pra saber o que foi bom: o milagre econômico? A política desenvolvimentista dos militares? Mas isso gerou um aumento da dívida externa...
Quando eu lembro do que aprendi na escola, porque eu não tenho idade pra lembrar daquele período, eu lembro que há duas histórias contadas (como sempre), de pelo menos muitas histórias: uns chamam o regime militar de Revolução Militar, outros o chamam de Golpe. Quando converso com as pessoas que viveram o período do regime militar, também escuto pelo menos duas histórias: o Brasil nunca prosperou tanto; a gente não tinha liberdade. E na falta de liberdade que me dá um frio na espinha pensar que as pessoas vão pra rua para pedir volta de regime militar. Há várias histórias de professores universitários que sumiram, de alunos que sumiram, porque discordavam do regime. Outro dia conversando com uma pessoa -- de classe média alta, escolarizada, viajada pelo mundo, a favor de uma intervenção militar -- falei que temia o regime militar. E ele me perguntou ironicamente: sério? me fale sobre as suas dificuldades no regime militar? você vai ter que prender alguém?
A impressão que eu tenho é que as pessoas acham que o regime militar é ruim só para os militares: porque eles vão trabalhar mais. Vão ter que vigiar os comunistas; os bancos; os desvios de dinheiro nas licitações públicas; vão ter que construir escolas; abrir estradas; resolver o problema da "crise hídrica" construindo super-mega-blaster hidroelétricas; resolver o problema da falta de chuva no nordeste; etc e tal. E os professores universitários? Porque minha preocupação é uma preocupação de classe também. Nós poderemos fazer greve? E quando a gente achar que o governo não estiver investindo o suficiente na educação? A gente vai poder reclamar? E quando a verba do orçamento não tiver sido votada, e a universidade não tiver dinheiro para pagar os funcionários da limpeza, ou a conta de luz, ou a conta de telefone (como já cansou de acontecer), a gente vai poder fazer um protesto? Uma greve? Um ato? Uma passeata? Eu vou poder entrar em sala de aula e falar o que quiser? Vou poder escolher trabalhar o texto que eu quiser? Porque sou professora de português, de vez em quando uso umas crônicas com críticas ao governo. Não vou poder fazer isso. Aliás, não vai ter texto no jornal que fale mal do governo. Tudo será muito bom. Pelo menos nos jornais.
A propaganda do regime militar será como foi: a imagem de um Brasil rico, em desenvolvimento, um  país do futuro. Eu não vou falar de economia, porque não é minha praia. Vou falar de dois legados do regime militar: a educação e a liberdade.
A educação foi democratizada durante o regime militar: antes, as escolas públicas existentes eram escassas e na maioria das vezes restritas aos filhos das famílias mais ricas. Havia poucos professores. Havia muitos potenciais alunos. Então o regime militar resolveu investir em educação. E como foi feito? Aumentando o número de escolas (política desenvolvimentista). Mas não havia professor suficiente. Qual a solução? Os professores mesmo sem escolaridade adequada passaram a lecionar em outras classes. Surge a figura do professor "leigo": um professor formado em matemática, por exemplo, poderia perfeitamente dar aula de física e química. Com isso, mais alunos tiveram acesso à educação. E a que tipo de educação? Hoje em dia, as pessoas reclamam que a educação no Brasil não é boa. Boa era nos anos 1960's. Boa era na época da palmatória... Mas será que alguém associa essa política desenvolvimentista na educação feita durante o regime militar a uma queda na qualidade? Nunca vi. No governo do FHC -- que não fez muita coisa pela educação também, que sucateou as universidades públicas, que mudou o regime de aposentadoria dos professores, que cortou verba da educação para conter a crise econômica -- pelo menos uma coisa boa aconteceu: a Nova LDB da Educação que extinguia os chamados "professores leigos". Isso fez com que muitos professores fossem sentar nos bancos universitários. E hoje os bancos universitários estão cheios. Os cursos de licenciatura estão sendo privilegiados, de certa maneira, pelo governo. A diferença entre o governo militar e o governo atual é que os investimentos na educação superior vão além dos salários dos professores (que sim, são baixos em comparação com o mundo todo), como, por exemplo, com os cursos de mestrado profissional. Então eu pergunto: a educação melhorou no regime militar? Ou o número de alunos nas escolas aumentou? As políticas que vieram depois, de certo modo, estão corrigindo uma política anterior. E é essa política educacional que a gente quer? É isso o que os brasileiros patriotas querem nas escolas? Professores leigos?
A liberdade foi reprimida de todas as maneiras no regime militar. O próprio FHC, um dos heróis nacionais das últimas manifestações, era professor da USP e teve que viver anos no exílio. Pra quem acha que só quem foi pro exílio foram Chico Buarque e Caetano Veloso, se engana. Muitos professores também foram. Meus pais eram alunos universitários na época do Golpe. Meus pais estavam na universidade. Então, as histórias que eu escuto são de pessoas que viveram o terror, os anos de chumbo. Meu pai conta uma história de que uma noite, os soldados invadiram o alojamento (ele morava no alojamento) e fizeram os alunos ficarem de cuecas, ajoelhados, com fuzis apontados pra cabeça enquanto vasculhavam os quartos a procura de documentos comunistas. Ele conta também outra história de um professor que era decano da COPPE-UFRJ e que não deixou um capitão entrar e ir revistar os alunos em sala de aula. O professor peitou o capitão e seus soldados. E foi idolatrado. Se eles eram comunistas ou não, não sei direito. Não sei se o comunismo alguma vez chegou ao Brasil. Se chegou, ficou no mundo das ideias. Só sei que pessoas sumiam; eram presas, torturadas, assassinadas porque discordavam do regime. E havia várias maneiras de discordar e os mais perseguidos foram os que pegaram em armas para discordar de um regime que punha a ordem com as armas...
A liberdade corre solto depois do regime militar. As pessoas têm a liberdade de ir pra rua pedir para lhes tirarem a liberdade.
As pessoas falam o que querem dos governantes. Xingam a presidenta de todos os nomes possíveis e imagináveis. Será que num regime militar, vão poder continuar xingando? E num regime militar uma mulher será presidenta? Ou chefe da casa civil? Ou ministra? Uma vez, num almoço de família, final dos anos 1990, vários amigos reunidos para um churrasco, alguns militares que estavam na ativa durante o regime militar estavam contando as histórias das caças aos terroristas-comunistas-gerrilheiros. E um dos coronéis falou: "Quando a gente chegava nos acampamentos na selva, os primeiros que a gente matava eram as mulheres. Porque não é da natureza da mulher ser guerrilheira. A natureza da mulher é de ficar em casa, cuidando da família, e não na guerra. Então, uma mulher guerrilheira é pior do que o homem". Em outra ocasião, numa festa de família e amigos, uns dez anos depois, a mulher desse coronel, temendo que a Dilma, então candidata, fosse eleita fala: "A Dilma é uma puta. Uma PU-TA!" E o motivo? "Ela foi guerrilheira." Essas pessoas eu conheço desde criança. Cresci com seus filhos. E eu fico pensando que se pessoas muito próximas com esse pensamento forjado por um regime militar não têm o menor pudor de falar essas coisas das mulheres, o que então a grande massa dos revoltados não falam? A grande massa xinga a Dilma de puta num estádio cheio. Escreve os xingamentos em cartazes e vão pras ruas vestindo verde e amarelo pedindo intervenção militar. Não vou aqui defender a Dilma, ela já tem problemas demais para resolver. Mas me causa espanto a maneira como as mulheres são tratadas. Me causa frio na espinha pensar que além de ter a liberdade cerceada, as mulheres ficarão sem voz ou serão julgadas como putas por irem contra o regime. Porque foi isso o que aconteceu nos anos do regime militar.
Mas aparentemente as pessoas não se lembram disso. Apesar de haver filmes e documentários sobre o regime militar, comissão da verdade, pagamento de gratificação pelas vítimas da ditadura, não se veicula muito o que foi o regime militar de verdade. Vemos só a propaganda do Brasil desenvolvido, país do futuro, campeão da Copa do Mundo de 1970. E isso me vem à mente toda semana quando eu ligo a televisão aqui em Berlim: a impressão que eu tenho é que o nazismo foi tão traumatizante, afetou a Alemanha de tal modo, que sempre a televisão mostra o que acontecia durante o governo de Hitler e as consequências disso para a Alemanha. Eu já vi documentário sobre a GESTAPO,  os campos de concentração, a segunda guerra,  a divisão da Alemanha, a Stasi, a queda do muro, a abertura da Alemanha e, de novo, para o Nazismo... Isso desde setembro até hoje (seis meses?). Eles escolhem uma maneira de lembrar sempre que os anos de chumbo do Nazismo e depois a perseguição às pessoas que queriam sair da DDR e ir para a Alemanha ocidental. Fora as comemorações e feriados pela queda do Muro, pela abertura, pela libertação dos presos de Auschwitz, etc e tal. Não há neo-nazis na Alemanha? Há. Mas os alemães têm medo dos neo-nazi. Não querem de volta aquele regime: o totalitarismo; a propaganda da Alemanha forte e desenvolvida a custa de muitas vidas.
Mas no Brasil, aparentemente, as pessoas não têm a lembrança dos anos de chumbo. Não têm medo de perderem sua liberdade. E isso, para mim, só pode ser explicado com a memória seletiva que a gente tem; ou melhor, com a memória seletiva da grande mídia: a grande mídia faz a gente acreditar que o Brasil é uma bagunça, que não somos organizados, que somos o povo mais corrupto dos corruptos, e que só um regime militar pode dar jeito nisso. Se todo mês passasse um documentário ou filme sobre a época dos anos de chumbo, as pessoas iriam para as ruas protestar, mas nunca pediriam a volta do regime militar.





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