É a Silvia, a gordinha.

Eu sempre fui uma menina “normal”, nem gorda, nem magra. “Normal”. Depois que eu fiquei mocinha, entretanto, comecei a ficar gordinha. Eu era sempre a mais gordinha das meninas da minha idade, e isso sempre me incomodou. Porque a Silvinha era gordinha, tinha que emagrecer. 
A primeira tristeza advinda da Silvinha gordinha foi ter que sair do ballet. Eu fui matriculada no ballet com 4 anos de idade, porque tinha os joelhos voltados pra dentro, e todo mundo usava umas botas ortopédicas horrorosas, terríveis, cruéis. Minha mãe não deixou isso acontecer comigo, então eu fui pro ballet pra andar direito, ganhar postura. E fiquei até os 16 anos. E saí não porque eu quis, mas porque meu corpo não era adequado. Eu tinha dificuldade de fazer ponta. Eu não era magrinha. Silvinha não tem corpo de bailarina. 
Então fui tratar de emagrecer. 
Início dos anos 90 tinha fórmula. Eu fui ao médico tomar a tal fórmula. Ele tirou uma dieta da gaveta, me apresentou o adoçante e me passou uma fórmula. Eu tomei o remédio, eu passei a usar adoçante nos sucos e chás - nessa época não tomava café ainda - e eu emagreci. Acho que emagreci mais por conta daquela dieta hipocalórica louca que ele passou do que pela fórmula. Não me lembro dos efeitos colaterais do remédio, nem lembro se eu tomei direito; então não posso falar se fórmula “funciona”. Me lembro que o adoçante deixava gosto de metal na boca. 
O tempo passou, eu entrei pra faculdade e minha vida começou a mudar. A última vez que vesti 38 eu era caloura. Depois os números   aumentavam e a bunda também. Sempre foi grande, mesmo quando eu era magra, e chamava a atenção e eu não gostava. 
Me alimentava bem e mal. Tinha dia que dava pra almoçar - não tinha bandejão, mas tinha pê-éfe - e dava pra comer salada, arroz e feijão. Mas a maioria dos dias era a promoção da coxinha com refresco de maracujá. Como que você vai emagrecer a base de coxinha com refresco de maracujá? Ainda mais um refresco super doce, que parecia uma garapa?
Eu nunca fui fã de doce. Eu sempre tive mania de ler rótulo e quando descobri que tinha açúcar no Nescau, eu deixei de adoçar o meu leite com achocolatado. Fazia vitamina de banana com aveia sem açúcar. Sem açúcar? E eu dizia: minha vida é doce. 
Veio o mestrado. E com ele uns 20 ou 30 kg a mais no corpo da caloura. E com esses 20 ou 30 kg a mais veio um problema de coluna. Minha coluna sempre foi torta. Mas nunca doeu porque eu não era gorda. Agora eu estava gorda. Minhas costas travavam e eu tinha uma dissertação pra escrever. Fui ao médico. Ele colocou meu raio-X na luz, e foi bem claro: posso te passar um remédio pra dor. Não vai adiantar. Você tem que emagrecer. Tem que fazer exercício. Onde você mora? Na ilha. Lá tem ACM. Vai pra ACM e mostra isso pro professor da musculação. E me deu uma receita. E foi aí que eu conheci a melhor professora de educação física da face da terra. Andréa Moreno. Ela me ouviu. Me olhou sério e falou: pra você emagrecer, tem que ser com nutricionista. Então eu fui fazer dieta, dieta não, reeducação alimentar. Emagreci 20 kg em um ano. Fazia musculação. Fazia natação. Quando eu tava entediada, Andrea inventava uma coisa pra eu fazer. Voltei a usar 38. Tinha barriga de tanquinho. Cheia de endorfina no corpo por conta do exercício. Comia de tudo. Reeducação alimentar é isso: você come de tudo. Você come pastel e come rabanete. Você come pizza e come beterraba. Não tem problema comer pizza. Se você sabe comer. Eu agora sabia comer. 
Fui fazer doutorado. E lá na Unicamp eu aprendi varias coisas: sintaxe gerativa, morar sozinha, tomar café sem açúcar e beber cerveja. Não na Unicamp. Mas com os amigos que a Unicamp me deu. Mas não tem problema. Eu sabia comer. Silvinha voltou a engordar. Mas tudo bem. O importante era ser saudável. Bem. De vez em quando eu comia um cachorro quente no podrão como jantar. Mas só um não tem problema. E meu manequim foi pra 42. Tudo bem. Sou saudável. Eu sei comer. 
Virei professora. Engordei demais. O peso agora doía meus joelhos. Foi aí que eu conheci a Andrea Patrícia. A melhor nutricionista que alguém pode ter. Porque ela escuta a gente. Ela faz uma dieta que a gente pode seguir. Uma dieta real. E libera a cerveja - moderadamente óbvio - porque não é dieta. É reeducação. 
Se a pessoa gosta de cerveja, ela não tem que se privar de cerveja. Mas tem que saber beber. 
E minha vida virou uma sanfona. Vou editar a parte dos últimos dez anos porque eu quero chegar em 2018. 
Em 2018, eu fazia exercício. Com personal. Mas entrei numa paranoia de fim do mundo por conta do Brasil e tudo eu bebia. Eu falava: o Brasil me obriga a beber. E bebia. Então eu não engordava mas também não emagrecia. Parei de ter personal. E voltei pra ACM, porque minha mãe estava fazendo exercício. Eu a levaria. A-hã. Quem me leva é ela. Porque junto com o “Brasil me obriga a beber” veio o cansaço. A sonolência. A insônia. 
Não dormia bem à noite e passava o dia quebrada. Eu sentava em casa no computador pra trabalhar, batia uma leseira. Um peso. Eu achava: ah. Tem alguma coisa aqui. Acendia um insenso. Fazia uma oração. Me conectava comigo mesma. O peso continuava. O sono continuava. Eu descia pra tomar café. Sem açúcar. Porque minha vida é doce. Mas agora tinha um chocolatinho. Uma bananinha seca. Alguma coisa docinha. Nunca fui de doce. Agora eu era de doce. Bebia o café e o sono meio que passava. Mas ficava ali. 
Hoje eu sei que o sono e a insônia não eram nada espiritual. Era uma doença silenciosa que vai comendo a gente por dentro. 
Este ano eu resolvi procurar um endocrinologista. Pensei: não tenho nada. Sou saudável. Eu tinha orgulho dos meus exames de sangue. Tudo bom. Até quando eu estava gordinha. Mas agora eu não estava mais gordinha, eu estava imensa de gorda. Imensa, igual a Marcelina, Silvia Marcelina, imensa. 
E o resultado deu que eu tenho resistência à insulina. Uma condição que se não for tratada vira diabetes. A sonolência? Era a insulina alterada. O cansaço? Era a insulina resistente. A insônia? Também. A vontade de comer doce? Também.
Mas o que causa isso, doutor? 
Obesidade. 
O. BE. SI. DA. DE. 
Não tem nada errado nos seus exames. Não tem problema na tireoide, não tem problema nos rins, não tem problema no pâncreas. É só a obesidade. 
A obesidade neste caso é culpa minha mesmo. Porque eu sei comer. Eu como beterraba. Eu como rabanete. Eu como de tudo. 
E aí eu fiquei me sentindo muito mal. Porque a Silvinha gordinha que tinha vergonha de usar biquíni, que não usava determinadas roupas, tinha ficado no passado. Eu estava gorda, mas feliz com meu corpo, não totalmente óbvio, mas não era mais uma paranoia. As pessoas me veem e falam: mas você não é gorda. Sou sim. Mas seu corpo é bonito. Mas é um corpo gordo. 
Mas tem problema ser gorda? Não. 
Tem problema deixar essa doença aparecer. Tem problema achar que não tem problema. 
E o tratamento é daquele ou muda ou morre. E faz duas semanas que eu to morrendo todo dia. Morrendo de dor. Morrendo de tristeza. Morrendo de ansiedade. Morrendo de irritação. Morrendo de enjoo. Morrendo de gastrite. Morrendo porque não fechei a boca. Porque não achei que eu pudesse ter uma doença. 
E por que esse relato todo?
Porque a vida é muito dura com a gente. Porque o culto ao corpo sarado, à dieta de batata doce com frango, aos agachamentos é ruim. 
Mas também o culto à gordelícia também tem que ser observado. Nem todas as pessoas que têm sobrepeso - de acordo com índices  de saúde - vão desenvolver doença. Às vezes pessoas mais magras do que eu tem essa doença. Doença não. Condição. Mas todo mundo tem que se observar. Fazer exames. 
Quando eu contei pra uma amiga sobre a resistência à insulina, amiga de mais de 20 anos, ela me disse: mas você tem facilidade pra emagrecer. O problema é que volta a engordar. E eu falei: o problema é que agora eu não posso mais voltar a engordar. 
Não tenho mais 20 anos, que a gente engorda e emagrece como quem troca de roupa. Já tenho meus 25, 26. 
E o peso da doença é que fui eu que cavei pra mim. E o tratamento é doloroso porque o remédio que eu tomo tem vários efeitos colaterais. E o compromisso em ficar boa só é meu. E tudo vai ser diferente. 
Se as duas ou três pessoas que estiverem lendo esse relato forem gordelícias, façam exame. Sejam gordelícias saudáveis. 
Eu resolvi escrever isso porque esse negócio de lutar contra a balança me acompanha minha vida toda. E eu já ouvi que pessoas gordinhas são gordas porque são preguiçosas. Relaxadas. 
Não sou relaxada. Não sou preguiçosa. Eu era saudável. Mas aí veio a idade e pregou uma peça na insulina. 
2019 é o ano da resistência. O ano que eu descobri que tenho resistência à insulina. Mas eu sou carne de pescoço, como dizia minha avó, e quem vai ganhar essa luta serei eu. E vou comemorar tomando uma cervejinha. UMA. Mas vou tomar. 

Comentários

  1. Adorei em muito momentos eu vi nesse relato .

    ResponderExcluir
  2. Que texto maravilhoso, Sílvia. Li com a facilidade de quem ouve uma história. Você devia escrever mais, bem mais. Sua condição serviu para te fazer ainda mais resistente! Um grande beijo e força na peruca

    ResponderExcluir
  3. Silvia, fui seu aluno em algum português na faculdade faz algum tempo, já. E não muito bom, por sinal. Mas sempre tive apreço e carinho pelos professores que achava fantásticos. \o/
    Seu relato me lembrou muitos amigos e o (des)cuidado que temos em relação a nossa própria saúde, às vezes. Beijo grande e fica tranquila que tu passa por essa mole!!!

    Beijo grande!

    ResponderExcluir
  4. Ganhará! Melhor dizendo, já está ganhando! Tá na hora de fazer o exame de curva glicêmica que a endócrino me passou. Olhei para o meu retrovisor e me vi nesse relato. Beijo grande, Silvia Guerreira Cavalcante!

    ResponderExcluir
  5. Na atualidade é raro encontrar pessoas cuja imagem corporal não seja uma questão. E a superestimação da forma física se camufla no mais das vezes como questão de saúde.

    Sempre bom ler relatos, pois a partir deles percebemos o movimento invariável entre a preocupação estética e a saúde. Um dos desdobramentos é o efeito de ao falar da questão Caminharmos pelo Vale dos preconceitos.

    Encerrando, gostei muito do post. Com todo respeito à intensidade do vivido, aos altos e baixos das experiências, a advertência para investigar as mensagens do corpo foi providencial e eloquente.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Diário de Quarentena: sete meses depois e eu vou falar do pronome neutro ou a peleja pronome neutro x preço do quilo do arroz

Diário de Quarentena: "O sistema de pronomes neutros e o preconceito linguístico: resposta ao Isaque"

Diário de Quarenta: Um ano depois ...