Isso é coisa de pobre!


Recentemente li duas matérias que me causaram espanto. Uma dava soluções ao estilo da Senhora dos Absurdos para o caos que se instalou no Rio de Janeiro durante o verão (http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-01-13/jornalista-retira-texto-do-ar-apos-propor-que-entrada-em-praias-do-rio-seja-paga.html) e outra com um humor peculiar de Caco Antibes ridiculariza os pacientes de plano de saúde (http://oglobo.globo.com/blogs/silvia-pilz/posts/2015/01/13/o-plano-cobre-558602.asp).
A jornalista (??) que reclama do caos no Rio de Janeiro durante o Verão sugere que linhas de ônibus e metrô sejam diminuídas nos fins de semana, que o acesso a praias da Zona Sul seja cobrado para evitar a superpopulação na Zona Sul nos fins de semana. Nada que a Senhora dos Absurdos já não tenha sugerido. Ao receber críticas, ela justifica que o Rio de Janeiro está um caos. Aí vem minha dúvida: quando foi que o verão no Rio de Janeiro não foi caótico? Não teve praia super lotada? Não teve briga por causa de linha de ônibus nova sendo criada da Zona Norte direto pro Leblon? Não teve arrastão? (tudo bem, arrastão é um fenômeno novo, ocorre há uns 15 anos mais ou menos no verão, no inverno, na Av. Brasil, na Linha Vermelha, dentro de Shopping...) Não teve temperaturas altíssimas? Ela passa o verão no Rio todo ano? Então por que o espanto este ano? Todo ano o verão é um caos. Aliás, o verão é caótico em qualquer lugar do mundo. Vai passar o verão em Paris: restaurantes lotados, um monte de gente na rua andando de um lado pro outro, pessoas pegando sol nas margens do Sena, nas escadarias, nos parques, trânsito caótico, pombo cagando nas nossas cabeças, turistas sem noção (de todas as nacionalidades) e os parisienses sempre mal-humorados. Isso eu vi em dez dias no final do verão. Imagina se eu tivesse estado lá em julho, durante as férias escolares. 
Só não é caótico pra quem passa o verão do Rio de Janeiro numa pousada esquiando nos Alpes, ou então vai pras Ilhas Canárias, ou então vai prum resort no Caribe (acho que aí tem mais movimento). Quem não pode ir nem a Campos de Jordão durante o verão carioca, tem mesmo que tentar se divertir quando tem folga (porque só professor e aluno tem férias SEMPRE em janeiro, a maioria das pessoas continua trabalhando) na sua própria cidade. E uma solução diferenciada para o caos é ir passar o verão do Rio fora do Rio.
A outra jornalista (???) escreve um texto inspirado no Caco Antibes, nos vários episódios do Sai de Baixo. Ao ler o texto, depois auto-avaliado como "bem-humorado" (e o conceito de humor a gente deixa pra outro dia), eu fiquei pensando: essa mulher foi a um laboratório fazer exame a primeira vez? E pobre usa tênis da GAP? E qual o problema de o cara ter plano de saúde? Só ela pode ter acesso a ambientes com piso de porcelanato e maquina de café à vontade? Acho que ela não sabe, mas os laboratórios oferecem um serviço de coleta domiciliar, diferenciado, claro, que permite que os pacientes tenham mais conforto para fazer seus exames (por vários motivos, alguns pacientes não podem se deslocar a um laboratório). Esse serviço não é coberto pelos planos de saúde, claro. Uma solução para não ter que conviver com pobres em filas de laboratório.
Enfim, eu não queria ficar dando soluções paras as jornalistas viverem melhor diante da grande ameaça da classe média C sobre a vida delas, então vou passar para o ponto deste texto. Ih, se eu fosse candidata ao Enem deste ano estaria entre os 529 mil candidatos com nota zero em redação, mas isso também é assunto pra outro dia...
Eu ainda não consegui entender qual é a grande ameaça que os "pobres" ou a classe Média C ou os novos ricos fazem para a velha classe média. Então eu fico achando que o problema maior não é o fato de mais pessoas hoje em dia terem plano de saúde, ou andarem de avião, mas sim, é o fato de as pessoas quererem ser diferenciadas. E toda vez que a gente vê algum hábito de uma meia dúzia se transformar num hábito de uma maioria, a gente vê também umas críticas com um certo medo como se a maioria oferecesse uma ameaça a essa classe diferenciada. E isso vai desde sempre. Não só quando envolve classe média versus classe média C, mas também quando envolve classe alta versus novos ricos.
Eu lembro dos anos 90 que as colunas dos jornais criticavam os novos ricos da Barra da Tijuca e suas extravagâncias. Com a explosão imobiliária na Barra, houve um incômodo geral com as novas socialites da zona Oeste cuja dinherama vinha principalmente do comércio (donos de rede de motéis, de padarias, de postos de gasolina). O problema não era o dinheiro, mas era que a riqueza não vinha de berço. Assim, ganhavam espaço no jornal as extravagâncias dessa nova classe alta: tapete persa como mouse de computador, motorista pro cachorro de estimação, diamante pro cachorrinho de estimação, etc. Os ricos de berço também tinham suas extravagâncias, mas eram extravagâncias de berço, que ganhavam destaque como "estilo", "classe", "jeito de ser".  Passou o tempo e a gente não vê mais matérias criticando os ricos da Barra em comparação com os ricos da Zona Sul. Agora a gente vê matérias criticando os pobres que frequentam os mesmos locais antes frequentados pela classe média.
A meu ver, essas críticas todas vêm do fato de sermos no fundo meio segregacionistas, racistas, preconceituosos, e justificamos com o fato de querermos ser especiais, únicos, importantes, gente diferenciada. Quem não se lembra de outra jornalista que escreveu sobre os aeroportos lotados, e que perdeu toda a graça de ir pra NY porque qualquer um, até o porteiro do prédio dela, poderia ir pagando a viagem a crédito? (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/80046-ser-especial.shtml). Está aí: as pessoas querem ser especiais. Querem tratamento especial, querem exclusividade. Mas eu continuo não vendo problema nas praias super lotadas no verão a não ser o problema de não achar lugar na areia; tampouco de laboratórios cheios de gente pra colher sangue, a não ser ter que chegar mais cedo. Também não vejo ameaça nenhuma (a não ser as ameaças que a grande mídia coloca na nossa cabeça associando determinado grupo étnico ou religioso a terroristas ou a bandidos, mas isso também é assunto pra outro dia) em aeroportos lotados, shoppings lotados, supermercados lotados. E o mundo capitalista continua dando soluções para essa necessidade de ser especial, único, com serviços exclusivos: laboratórios que atendem a domicílio, médicos das estrelas que não atendem pelo SUS nem com plano de saúde, classe executiva nos aviões e sala VIP nos aeroportos, lugares e passeios exóticos não explorados, como, por exemplo, um hotel de luxo na África do Sul que simula favelas para turistas extravagantes. O cara é podre de rico, mas quer pagar caro para ficar alguns dias vivendo como um favelado na África do Sul. Tudo isso se dá por quê? Porque a gente quer ser mesmo é especial, ser único, ser VIP, diferenciado. E a praia da Zona Sul lotada de gente da Zona Norte gera incômodo. E as salas de espera do laboratório com piso porcelanato (caríssimo) cheias de gente comum também incomodam. E conviver com pessoas comuns nos aeroportos também incomoda. Mas dois elefantes incomodam incomodam muito mais.
Tanta coisa acontecendo no Brasil e no mundo e a pessoa escolhe falar de pobre. Isso é coisa de pobre de assunto.










Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Diário de Quarentena: sete meses depois e eu vou falar do pronome neutro ou a peleja pronome neutro x preço do quilo do arroz

Diário de Quarentena: "O sistema de pronomes neutros e o preconceito linguístico: resposta ao Isaque"

Diário de Quarenta: Um ano depois ...