O conservadorismo nosso de cada dia

Tenho notado recentemente uma onda preconceituosa tomar forma nos discursos e conversas por aí que parecem revelar uma tendência ultra-conservadora que está se espalhando como vírus. Que a gente encontre conservadorismo em integrantes da elite, ou da velha classe média ou de alguns segmentos sociais, tudo bem. Agora, encontrar um discurso conservador entre jovens universitários é surpresa pra mim. Afinal, eles são tradicionalmente os questionadores da velha ordem mundial...

E eu comecei pensar no assunto depois de assistir "Clube de Compras Dallas", que conta a história do machão interpretado pelo Matthew McConaughey que contrai o HIV apesar de não ser homossexual e não utilizar drogas injetáveis, e deixa transparecer a fragilidade do sistema de saúde norte-americano, subordinado aos grandes laboratórios. Mas o melhor de tudo no filme pra mim foi ver como um machão homofóbico, depois de virar aidético, se torna um cara legal, e se desfaz de alguns preconceitos vindos do seu meio social. E a gente vivencia em diversas situações do cotidiano o preconceito típico de um machão boiadeiro morador de uma cidade do Texas no fim dos anos 70.  Numa página de um machista qualquer ensinando as mulheres a manterem seus relacionamentos (e, provavelmente, a serem felizes na vida), vi dicas do tipo "faça as tarefas de casa com amor, não tenha amizades masculinas, não reclame da falta de atenção, deixe-o sair com os amigos pra jogar futebol, sorria mais". Outro dia, num evento social, eu ouvi "como eu vou explicar pro meu filho de 10 anos dois homens se beijando?". Numa outra ocasião, ao comentarem sobre os alunos universitários que trabalham e estudam, eu ouvi: "se o aluno trabalha e estuda, que tipo de curso é esse que ele vai fazer? sem qualidade nenhuma".
 
O ponto aqui é que essas situações preconceituosas na verdade estão escamoteando uma grande onda conservadora que está culminando com as marchas pela família, com Deus, contra o comunismo.

Poderia começar a falar aqui da minha surpresa ao saber o resultado de uma pesquisa do IPEA sobre a violência contra a mulher que revelou que 58% dos entrevistados acreditam que a maior causa dos estupros é o modo como as mulheres se vestem. Segundo Daniel Cerqueira, o diretor do IPEA, “o estudo reflete uma ideologia patriarcal e machista que coloca a mulher como objeto de desejo e propriedade”. Mas aí eu vejo que há mulheres que aceitam as dicas do site machista que as ensina a ser desejadas e amadas e a não perder os seus machos, apesar de tudo o que as mulheres sofreram e têm sofrido e como vários movimentos sociais têm agido para combater a violência contra a mulher. Mas eu não vou falar sobre isso, não agora.

Poderia falar também de como as pessoas se preocupam em explicar ao seu filho de 10 anos dois homens se beijando, mas não se preocupam em explicar como um pai mata um filho de 8 anos a pauladas para ensiná-lo a ser homem. Mas também não vou falar sobre isso, não agora.

Vou falar sobre o preconceito social escamoteado no discurso a favor da meritocracia e da qualidade acadêmica, contra a democratização do ensino superior e como isso pode estar relacionado à onda de marchas pela família, com Deus contra o comunismo.

O processo de democratização do ensino no Brasil é muito recente, dos anos 1960, quando as escolas deixam de ser privilégio dos filhos-família e muitos filhos das classes trabalhadores passam a frequentá-las. Mas esse processo teve efeitos não só no ensino básico diretamente, mas também no ensino superior. O número de escolas no Brasil à época não era suficiente para atender à população, tampouco havia professores formados em número suficiente. Surgiu então a figura do professor "leigo", que não necessitava ter um diploma de um curso superior para estar lecionando nas escolas. Ou quando tinha diploma, o professor era responsável pela formação geral: um diploma em Matemática habilitava o professor a dar aula não só de matemática, mas também de química e física.
Além disso, esses professores não advinham necessariamente da elite. E isso fez com que o ensino mudasse de certa maneira com a entrada na escola de outras normas linguísticas que não a norma padrão culta. Afinal, nem professores nem alunos dominavam (ou usavam) a norma culta característica da elite "intelectual" tampouco da dos filhos dessa elite intelectual. Isso é "sentido", de certa maneira, quando a elite se manifesta dizendo que o ensino antigamente era melhor que o de hoje, que hoje em dia é uma brincadeira, que hoje em dia nem professor fala mais direito... Enfim...

Uma das consequências da democratização do ensino no Brasil, no aumento das escolas e do número de professores atuando está no ensino superior. Com a Nova LDB, de 1996, que veio substituir a LDB de 1961, os professores do ensino básico têm de ter curso superior. Assim, há mais uma vez um movimento em direção às salas de aula, mas agora para os bancos das universidades. A partir daí, o número de cursos de licenciaturas aumenta no país: os bancos universitários não estão mais restritos aos filhos-famílias; os professores leigos, na sua maioria não pertencentes à elite sócio-econômica, passam a ocupar as universidades para se formar e voltar para a sala de aula. Até aí, tudo bem. Ocorre que o ensino superior público e gratuito não é suficiente para dar conta do número de professores "leigos" que vão buscar os cursos de licenciatura e/ou pedagogia. Então, há uma proliferação de faculdades particulares pelo país a fim de atender à nova LDB.

As universidades públicas continuaram a ser o Olimpo, onde os filhos-família iam estudar, pelo menos nos cursos de maior demanda. Isso ocorre, porque o governo federal que promulgou a Nova LDB (de 1996 até 2002) não se preocupou muito em investir na educação superior pública e gratuita. Foi só com a mudança de governo, que se começou a olhar mais de perto para as universidades federais: foi criado o REUNI, o programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, que tem como meta principal "ampliar o acesso e a permanência na educação superior"; foram criadas novas universidades federais e institutos federais de educação pelo país; instituiu-se o sistema de cotas sociais no acesso ao ensino superior.

Essas medidas, de certa maneira, começaram a mudar a cara dos cursos superiores no Brasil: se a partir dos anos 1960, há um aumento do número de alunos no ensino básico; a partir dos anos 2003, há um aumento do número de alunos em universidades federais. Os bancos universitários federais agora não são privilégio dos filhos-família: a classe trabalhadora começa a ocupar os mesmos bancos que os filhos-família. E o que tenho notado ultimamente, por ser professora de uma universidade federal, é que o SISU, o Sistema de Seleção Unificada, está fazendo com que haja maior diversidade sócio-econômica entre os alunos que ocupam os bancos dos mesmos cursos. Até pouco tempo atrás, os filhos da classe trabalhadora ocupavam principalmente os cursos de licenciaturas; os cursos de maior demanda continuavam a ser ocupados pelos filhos-família da elite brasileira.

E a democratização do ensino, tanto básico quanto superior, tem incomodado a elite há muito tempo. E vemos isso em comentários do tipo "o governo desmantelou a educação básica, agora vai acabar com o ensino superior"; "não é todo mundo que pode cursar uma universidade não"; "na Alemanha, nem todos vão pra universidade, o professor do ensino médio diz quem vai pra universidade e quem não vai. Aqui, qualquer um vai pra universidade" ... Mas eu não quero fazer discurso pró-governo federal, só mostrei alguns dados, quero chegar na marcha pela Família, com Deus contra o comunismo e como está tudo misturado na onda conservadora que se forma por aí.

A democratização do ensino superior faz mexer com o status quo da sociedade: as universidades públicas são o Olimpo do conhecimento e só os filhos-família são merecedores de ocupar esses bancos. Quando o número de alunos nas universidades federais aumenta muito em pouco tempo, e isso está relacionado à política de governo, esse governo é comunista! É claro que esse governo é comunista! É como se vivêssemos em castas e a mobilidade social fosse algo banido da nossa sociedade: você nasceu numa família de trabalhadores, não pode ocupar um banco de uma universidade pública. As universidades públicas são o celeiro para os futuros intelectuais desse país: porque os alunos não só assistem aula, eles participam de grupos de pesquisa, assistem palestras, conferências, eles estão sendo preparados para ser a elite intelectual deste país, aprendem a questionar... E se você nasceu numa família de trabalhadores, e tem que trabalhar antes de ir à Faculdade, não tem como você se inteirar de tudo o que passa na universidade.Sim, a universidade pública ainda é o lugar onde há interação mais estreita entre pesquisa e ensino, principalmente nas áreas humanas que não vão receber muito financiamento da iniciativa privada, mas não pode ser somente o "celeiro para os futuros intelectuais deste país". É cursando uma universidade pública que o filho da classe trabalhadora tem a chance de mudar de "casta".

E isto vai incomodar a elite, porque a elite não quer mobilidade social, não quer mudança no status quo. E só um governo comunista adota atitudes para mudar essa situação. Assim, podemos ver o preconceito elitista em todas as esferas: as mulheres que lutam contra o machismo são feminazis; beijo entre pessoas do mesmo sexo é ditadura gay e essa política de governo com o sistema de ingresso nas universidades é desmantelação do ensino superior. E dá pra entender porque numa das marchas pela família, com Deus contra o comunismo uma estudante com tranças patriotas no cabelo diz "a gente é conservador, a gente conserva nossos valores, nossas famílias, nossos direitos".

Quais são os valores conservados? São aqueles de um machão texano dos anos 70? São os valores das castas indianas? Eu prefiro a mudança, sempre. Prefiro trabalhar num lugar onde eu tenho a oportunidade de conviver com diferentes pessoas, de diferentes estratos sociais e daí aprender sempre algo novo. Prefiro conservar pepinos, cebolas, picles...

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