"João, desliga a televisão", ou "prazer, Silvia Cavalante"

Atendendo a pedidos (um pedido, de um leitor sobrevivente), resolvi escrever uma história rapidinha só pra não falarem que eu não escrevo mais...
Tem um ditado popular que fala algo como "criou a fama, agora deita na lama", ou na cama, sei lá. E minha famá, fama de má, já foi criada há muito tempo desde que eu trabalhava do outro lado da Baía de Guanabara. E a história de hoje é pra deixar registrado como que a gente cria fama de Cavalante por aí...
Como de costume, estava dando aula pra uma turma às 7:30 da manhã. E, como de costume, os alunos não chegam na hora. Mas o ocorrido numas três ou quatro aulas naquele semestre especificamente me deixou intrigada. Tinha um aluno, vamos chamá-lo de "João", mas poderia ser qualquer nome, que sistematicamente chegava atrasado. Tudo bem, vá lá, o cara sai de Governador Valadares (MG) e tem que estar às 7:30 no Fundão, vamos dar um desconto e não encher o saco do sujeito porque ele chegou atrasado.
Mas esse João especificamente chegava atrasado e fazendo barulho. Vá lá, o cara sai de Governador Valadares, pra estar às 7:30 no Fundão, entra atrasado e ainda vai entrar em silêncio?! Vamos relevar: deixar a porta bater ao entrar, arrastar uma outra cadeira, abrir ou fechar a janela para entrar ou não o ar, tudo bem. Mas esse João não chegava fazendo barulho normal que qualquer pessoa normal que sai de Governador Valadares para estar às 07:30 no Fundão faz, não, o João entrava assistindo televisão.
...
-- Epa, foi isso mesmo o que ela falou? "O João entrava assistindo televisão?"
-- Sim, foi isso mesmo o que eu falei: o João entrava assistindo televisão.

Então, no início do semestre, quando eu estou fazendo a boazinha, sendo legalzinha, engraçada e espirituosa, pra ganhar a confiança da turma e depois mostrar quem eu sou na verdade, esse João sem noção entra assistindo televisão! No primeiro dia, ele entrou, atrasado, óbvio, afinal vá lá, sair de Governador Valadares ..., sentou e eu comecei a ouvir um sonzinho de vozes falando junto comigo. A aula já tinha começado, obviamente, e eu notei que tinha um barulho de rádio ou TV na sala. Nunca que eu esperaria ouvir barulho de rádio ou TV DURANTE a aula, então achei que já estava com crises alucinantes, ouvindo vozes por aí, e já pensando em ir procurar um psiquiatra, quando parei, virei pra turma e perguntei:

-- Vocês estão ouvindo um rádio ou TV falando ou é coisa da minha cabeça?

O João, obviamente, não ouviu minha pergunta; estava entretido no programa de TV. Vá lá, você sai de Governador Valadares (MG) pra estar às 07:30 no Fundão, aproveita que tem um celular que pega sinal de TV então você não vai assistir o telejornal que é das 07:30 às 08:30?  E ainda vai prestar atenção na pergunta da professora? Vá lá...
A turma, obviamente, ficou com aquele ar de conto-não conto, se entreolhando, porque afinal de contas eles não vão dedurar o colega. Mas silenciosamente todos se viraram pro João. Então eu me aproximei do menino e perguntei:

-- É de você que está vindo o barulho da TV?
-- É o Bom dia, Brasil, professora.
-- Legal. A aula já começou, você pode desligar a televisão, por favor?

A muito contragosto, o menino desligou a televisão e olhou pra frente. Continuei a aula.
No segundo dia de aula, depois desse daí, o menino entra atrasado, afinal, vá lá, o cara sai de Governador Valadares ..., fazendo barulho, e de novo com a televisão ligada. Dessa vez, eu esperei um pouco até que ele se instalasse e por iniciativa própria desligasse a televisão. Obviamente, ele não fez isso. Então eu educadamente me aproximei dele, quero registrar que foi e-du-ca-da-men-te, e pedi pela segunda vez naquele semestre:

-- João, desliga a televisão?

Ele, a muito contragosto, desligou.

Na terceira aula que o moleque vai assistir, acontece o que? O mesmo de sempre: ele chega atrasado, eu já estou dando aula, ele chega arrastando cadeira (porque aí já estava revoltado de ter de desligar a TV durante a aula de morfossintaxe), além de estar com a televisão ligada. Esperei, sei lá, um minuto, pra ele por iniciativa própria desligar a televisão. Obviamente, ele não desligou. Dessa vez, meu jeitinho doce e meigo de ser se manifestou de uma forma bem peculiar, bem Cavalcante, e eu não fui educada. Me aproximei e perguntei:

-- João, qual é o seu problema? Quantas vezes eu vou ter que falar "desliga a televisão" pra você ouvir? Meu irmão, é aula! Não é pra ver televisão!
-- Calma, professora. Já vou desligar. Estou assistindo Bom dia, Brasil. Pô, que estresse. Nem precisa tanto...
-- João, quer assistir ao Jornal, vai assistir lá fora. Aqui dentro você assiste aula!

E ali começou uma relação de amor e ódio: ele me odiava e eu amava isso. 

...
E depois desse episódio me passam pela cabeça várias questões:
a) nem sou tão Cavalante assim, ou sou?
b) se ele quer assistir Bom dia, Brasil, por que diabos se inscreveu numa disciplina às 07:30 da manhã?
c) qual a probabilidade de um professor falar "João, desliga a televisão" numa aula que não usa televisão como recurso multimídia?

Devo confessar que é a última a que mais me intriga... até hoje.

Comentários

  1. Não é sério que o camarada era de Gov. Valadares, né? Sei lá né, achei melhor perguntar, se um camarada acha normal chegar na aula e ficar vendo tv... tudo é possível. E que ele usasse um fone de ouvido pelo menos né

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Diário de Quarentena: sete meses depois e eu vou falar do pronome neutro ou a peleja pronome neutro x preço do quilo do arroz

Diário de Quarentena: "O sistema de pronomes neutros e o preconceito linguístico: resposta ao Isaque"

Diário de Quarenta: Um ano depois ...