O Enem, a classe média e a chamada "orkutização do feicibuqui"

Quando o Enem era um exame pra avaliar o ensino médio, ninguém se preocupava com os critérios de correção, com os índices educacionais ou com o nível dos alunos que faziam a prova. Na verdade, a preocupação se voltava para os colégios: colégio bom era o colégio com nota boa no Enem. O ensino de qualidade passava a ser critério para a classe média - a tradicional, não a nova - matricular os filhos numa determinada escola. O fim acabava sendo o mesmo: vou matricular meu filho numa escola com nota alta no Enem porque ele vai ser mais bem preparado pro vestibular numa universidade boa.
Na verdade, a gente via de tudo nas redações, de tudo mesmo, coisas muito piores do que um ou outro erro de ortografia e receita de macarrão instantâneo. Mas, ninguém dava a mínima, pois não estava em jogo ali uma vaga numa universidade federal. Agora, que o Enem virou vestibular, o pessoal começou a se preocupar com questões bem menores do que as que apontam para problemas na educação brasileira.
Na verdade, a repercussão dos "erros" encontrados nas redações e os critérios de correção são mais um movimento da velha classe média preocupada com a mobilidade sócio-econômica por que tem passado o Brasil nos últimos anos. E um exemplo muito claro disso são as reiteradas manifestações da velha classe média sobre o que anda fazendo a nova classe média.
Todo mundo já ouviu gente reclamando do aumento no número de passageiros de avião e como isso é ruim, do aumento do número de veículos nas ruas e como isso é ruim, dos shoppings lotados e como isso é ruim: agora "pobre" anda de avião e compra carro zero. E pega o carro zero e vai pro Shopping fazer compras!
E o pior de tudo, para a velha classe média é claro, nem pobres eles são: eles são a nova classe média. A classe que mais gasta no Brasil. A classe que agora tem acesso a "produtos" antes restritos à velha classe média. E aí entra a história da "orkutização do feicibuqui".
Eu não tenho nem orkut nem feicibuqui, já tive e enjoei. Enjoei principalmente por causa do que as redes sociais acabam de certo modo fazendo com o ser humano. Ou melhor, com o que a coerção do grupo acaba fazendo com o ser humano. Os recursos do feicibuqui são tantos que fazem com que a gente fique escravo deles. E todo mundo os usa. Ninguém mais chama pruma festa ligando, mandando convite por emails; cria um evento no feicibuqui. A gente pode tornar públicos vários eventos, muitas vezes corriqueiros. Passamos a ser celebridades. E quando a gente abre qualquer revista de celebridade, está lá tudo o que elas fazem: Fulana foi vista saindo do Shopping usando uma aliança no dedo direito; Beltrano e Fulana são fotografados em festa beneficente; Beltrana mantém a forma comendo salada de endívias, Fulano toma banho de mar com o seu herdeiro, Fulana e Beltrana postam fotos do seu casamento...
E o que a velha classe média faz no feicibuqui? Posta fotos da salada que comeu no almoço, fala do engarrafamento na Perimetral às 8:00 da manhã, faz check-in na facul e etc e tal. Por que? Porque cada um é uma celebridade. E o grau de celebridade é medido pelo número de curtidas ou comentários recebidos. Fora do feicibuqui, somos só pessoas comuns que pegam engarrafamento, que almoçam, que vão pra faculdade. Mas ninguém, absolutamente ninguém, sabe que a gente faz tudo isso, ou curte ou comenta. Fico pensando como seria o comportamento das pessoas na vida real se elas se manifestassem como se manifestam no feicibuqui: eu estou almoçando, aí passa um conhecido e comenta "hum, comendo salada, heim Silvia". Eu chego na Faculdade e alguém vira e fala: "curti". Estou no engarrafamento na Perimetral e passa um e comenta: "que saco, ninguém merece ". E mais, declaram coisas inteligentes sobre qualquer assunto do mundo.
E o que isso tudo tem a ver com a orkutização do feicibuqui?
É que a nova classe média, aquela de trabalhadores que teve ascensão sócio-econômica, quer fazer a mesma coisa: quer postar o almoço, o passeio na praia, o engarrafamento, o check-in na facul, tecer comentários inteligentes sobre qualquer assunto. Igualzinho ao que todo mundo faz: as celebridades e os filhos da velha classe média. E qual o problema disso? Porque tem um problema, senão as pessoas não se incomodariam a ponto de comediantes de stand up fazerem piada falando: vamos criar uma nova rede social e só deixar no feicibuqui o povinho que veio do orkut.
Ah sim, o problema: eles não são iguais à gente. Eles não têm noção! Postam tudo o que fazem no feicibuqui, falam errado, publicam fotos do almoço no subúrbio! E ainda se metem a ser "Clarices"!
Me chamou a atenção o vídeo da menina de óculos escuros que faz críticas a esse comportamento social do feicibuqui, mas que foi julgada pela forma de falar. Deve ter sido tão criticada, que publicou um segundo vídeo rebatendo as críticas: "tô sabendo que tem um monte de professor de português por aí"; ela começa. E um blog de humor, criado por um filho da velha classe média, publica o vídeo com comentários do tipo: "agora a taxa de orkutização do feicibuqui chega a 102%"; "o pior é que ela tem razão". Ela tem razão! Só não usa a variedade linguística esperada das classes que sempre dominaram social e economicamente o país.
A velha classe média se incomoda com a orkutização do feicibuqui mas não olha pro próprio umbigo quando não percebe que todos são iguais: os comportamentos das celebridades, da velha classe média e da nova classe média são iguais. Na verdade, são idênticos ao comportamento de qualquer pessoa NO MUNDO que usa feicibuqui. Teve um episódio de The Big Bang Theory, em que Amy liga aflita pro Sheldon e pergunta: "Sheldon, o que houve? Você disse que ia pra casa do Raj e de acordo com o seu feicibuqui, você acaba de fazer check-in na Cheese Cake Factory". Pra quem não sabe, Amy e Sheldon são brancos, têm Doutorado e desenvolvem pesquisa numa universidade na Califórnia! Bem classe média altamente escolarizada! E se comportam no feicibuqui como qualquer um.
A velha classe média que critica o comportamento no feicibuqui da nova classe média deveria se inteirar mais do que acontece no mundo e aí saberia que o feicibuqui era popular no mundo muito antes de chegar ao Brasil, e o povo já postava o que estava fazendo no mundo bem antes do povo aqui no Brasil. E o pior: todas as ferramentas são desenvolvidas pelo povo do feicibuqui lá no Vale do Silício! O uso das ferramentas não se restringe ao povinho que migrou do orkut pro feicibuqui. Mas isso, a velha classe média não sabe; está muito envolvida no seu mundo e se incomodando com a ascensão social da nova classe média.
E o que isso tudo tem a ver com o Enem? E com as redações?
É que o Enem consegue incomodar muita gente, principalmente a velha classe média: como vestibular, incomoda os donos de cursos preparatórios que ganhavam dinheiro com turmas especiais pra vestibular da UFRJ, da UFF, da Unirio, da Rural. Agora, só tem uma turma, a preparatória para o Enem.
Incomoda a velha classe média, acostumada a estudar nos melhores colégios e passar nos vestibulares das melhores universidades. Incomoda principalmente, com o sistema de cotas que dá a chance para os filhos de outras famílias entrarem pra universidade. Incomoda quando mostra que os filhos da velha classe média também "erram". Ou aquelas redações com "problemas" de ortografia e concordância foram todas escritas pelos filhos da nova classe média?
E o pior de tudo: o incômodo é bem maior porque agora a nova classe média também se expressa, é vista, é ouvida e é lida no território livre da internet. E é tão lida e tão vista quanto é criticada! E isso é, pra mim, muito bom. E é bom porque está parecendo aquele movimento da burguesia francesa que fez a revolução clamando por liberdade, fraternidade e igualdade e pôs abaixo o rei.
É bom a velha classe média abrir o olho, senão será decapitada. E vai perder a cabeça pro pessoal que erra nas concordância tudo!

Comentários

  1. Sensacional! Adorei o texto! Só para você saber: as classes médias já estão compartilhando, curtindo e comentando no feicibuqui! Hehehehe
    Beijão, Silvia!

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  2. Aplausos, professora! Excelente reflexão!

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  3. Perfeito o texto, Silvia! É bem por aí mesmo!
    Compartilhando...
    Beijos

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  4. Ótimo texto, Silvia! Ah! E cheguei a ele pelo facebook! hehehhehe

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  5. Talvez esse texto abra a mente de algumas pessoas. Talvez não. O que importa é a discussão!

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  6. *clap clap clap*
    Esse povo elitista me parece mais ignorante do que a classe a qual eles cunham ignorantes.

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  7. Silvia Regina, amei! Para quem se diz apolítica, está politizada e mais próxima dos sociólogos de "esquierda" do que pensa!

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    Respostas
    1. Ah, esqueci de dizer: a culpa toda, felizmente, é do Lula!

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